Por Lilia Diniz em 26/07/2012 na edição 704
A obesidade infantil é apontada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como um dos mais graves problemas de saúde pública. No Brasil, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), um terço das crianças de 5 a 9 anos está com peso acima do recomendado. Nos últimos 20 anos, os casos de obesidade nessa faixa etária quadruplicaram. O Observatório da Imprensa exibido ao vivo na terça-feira (24/7) pela TV Brasil discutiu o papel da publicidade no aumento do peso das crianças.
A polêmica em torno da propaganda de alimentos para o público infantil afeta até a comunidade científica. Uma mesa de debates que seria realizada no Congresso Mundial de Ciência e Tecnologia sobre o papel da mídia na obesidade infantil foi cancelada para não afugentar possíveis patrocinadores. O encontro será realizado em agosto, no Brasil. A Sociedade Brasileira de Ciência e Tecnologia de Alimentos (Sbcta) havia proposto a discussão por considerar o sobrepeso das crianças um tema urgente.
Em 2010, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) baixou uma resolução com novas regras para a publicidade de alimentos. A medida previa que ao final das propagandas de produtos com elevadas quantidades de açúcar, sódio e gorduras saturada ou trans, deveria ser emitido um alerta sobre os riscos desses produtos para a saúde. O texto levantou polêmica e foi suspenso três meses depois pela Advocacia Geral da União, que avaliou a medida como inconstitucional. O pedido de suspensão foi feito pelo Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar) e pela Associação Brasileira das Indústrias da Alimentação (Abia).
Entre os fatores apontados para a obesidade infantil estão o pouco tempo dedicado às atividades físicas e o consumo excessivo de alimentos industrializados. Se o quadro não for revertido, as próximas gerações correrão um risco maior de desenvolver hipertensão, diabetes, problemas cardiovasculares, renais e cerebrais. Apenas uma ação conjunta entre Estado, família, indústria e agências de publicidade pode mudar o panorama.
Para discutir esse tema, Alberto Dines recebeu no estúdio do Rio de Janeiro o ex-ministro da Saúde José Gomes Temporão e o engenheiro de alimentos Luiz Eduardo de Carvalho, um dos convidados do debate cancelado do Congresso Mundial de Ciência e Tecnologia. Médico sanitarista, Temporão é formado pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Foi secretário de Atenção à Saúde do Ministério da Saúde e diretor do Instituto Nacional do Câncer (Inca). Carvalho é professor da UFRJ, foi presidente da Sociedade Brasileira de Ciência e Tecnologia de Alimentos (Sbcta) e da e da Associação Latinoamericana e do Caribe de C&T de Alimentos (Alaccta). Em São Paulo, o programa contou com a presença de Ekaterine Karageorgiardis, advogada do Instituto Alana, organização sem fins lucrativos de proteção à criança que desenvolve atividades voltadas para a área de consumo.
Punição dificultada
Antes do debate ao vivo, em editorial, Alberto Dines questionou: “Quando o Estado defende o bem-estar e a saúde do cidadão, isso significa que o Estado está tutelando a sociedade? Será que os ideólogos do mercado não conseguem distinguir a diferença entre defender e tutelar?” Dines sublinhou que a questão ganha destaque quando as autoridades tentam coibir situações abusivas; relembrou as ações da Anvisa sobre a publicidade de remédios e a recente interferência da Anatel no mercado de telefonia móvel. “A mídia fez cara feia novamente, esquecida de que também é responsável por anunciar produtos e serviços sem investigar a capacidade das empresas em atender as promessas da publicidade”, afirmou.
A reportagem exibida antes do debate entrevistou especialistas no assunto. A coordenadora de Alimentação e Nutrição do Ministério da Saúde, Patrícia Jayme, destacou que é importante que os pais entendam o grande risco que as crianças de hoje têm de desenvolver obesidade. Entre os fatores apontados por ela estão o estilo de vida, o padrão dos alimentos disponíveis para consumo e a exposição ao marketing desses alimentos. Patrícia Jayme ressaltou que a escola deve ser um ambiente de promoção da alimentação saudável e da prática de atividades físicas.
A presidente Conselho Regional de Nutrição (RJ/ES), Kátia Cardoso, avaliou a mudança na alimentação infantil: “As crianças vêm apresentando doenças que não eram apresentadas há algum tempo. As pesquisas vêm apontando essa mudança no contexto do sistema alimentar há uns dez anos”, disse. Neyza Porchet, psicanalista especializada em crianças, afirmou que o peso da publicidade é imenso na vida contemporânea. “As crianças têm uma peculiaridade. Para a criança, o real e o imaginário, a fantasia e o fato, não têm limites tão definidos quanto para nós. Então, elas não têm uma consciência tão clara que aquilo ali é um comercial, que o que está aparecendo é uma fantasia”, disse.
Na visão do publicitário Armando Strozenberg, atribuiu-se à propaganda um enorme poder que não corresponde totalmente à verdade. “A publicidade tem o seu papel influenciador, mas ela não é tão importante quanto as pessoas acham. Nós hoje temos a sensação de que a publicidade está sofrendo bullying de vários setores e isso é muito negativo porque acaba criando um estigma para a publicidade, não observando os verdadeiros problemas. A publicidade transmite uma informação de um ponto para outro, mas nós não podemos ser responsabilizados por eventuais problemas que algum produto tenha em algum momento”, argumentou.
Sobre a iniciativa da Anvisa de tentar regular a publicidade de alimentos, Strozenberg disse: “O nosso espaço é finito e, naturalmente, o nosso tempo também, infelizmente. Esse tipo de contribuição faz todo sentido, seria ótimo. Quando você pensa que tem trinta segundos, eventualmente quinze segundos para dizer o que você está vendendo, oferecer o produto ao consumidor, se você ocupar treze, quatorze segundos com esse alerta, automaticamente o processo se torna inviável”.
Armando Strozenberg pontuou que houve avanços nos últimos anos a partir da atuação do Conar. “Os próprios anunciantes fizeram esforços enormes nesses últimos anos para que justamente a publicidade deixasse de falar diretamente com as crianças. A publicidade não se dirige mais à criança. Os nossos horários também foram rigidamente mudados, especialmente na comunicação de massa. Os publicitários também são pais, tios, são avós; nós não somos demônios que queremos usar o nosso trabalho a serviço de alguma coisa que seja altamente negativa para a sociedade, particularmente para as crianças”, afirmou.
O promotor público João Lopes Júnior ressaltou que a restrição da publicidade de alimentos para as crianças não só é legalmente possível como também é necessária: “Ela pode significar um dever do Estado. A Constituição brasileira exige que o Estado adote políticas públicas preventivas na área de saúde. Se hoje nós temos uma epidemia de obesidade no mundo inteiro e se essa epidemia é causada pelo consumo excessivo de determinados alimentos, e se a publicidade estimula – sobretudo para crianças – esse consumo excessivo, evidentemente essa restrição se mostra necessária no contexto de uma saúde pública para promoção da saúde da criança”.
O promotor destacou que o corporativismo de órgãos de autorregulação pode impedir a punição a abusos. “Haverá sempre situações em que o corporativismo pode impedir um controle de determinados abusos. O publicitário vai estar julgando o seu par muitas vezes por uma publicidade, por uma peça, por uma abusividade que ele já cometeu no passado e que pode vir a cometer no futuro. Então, ele não tem essa imparcialidade necessária”, poderou.
Direito de escolha
No debate ao vivo, Luiz Eduardo de Carvalho explicou que, historicamente, os alimentos não eram tão gostosos. A engenharia alimentar identificou em cada alimento original as características mais atrativas – como sabor, textura, cor e odor – e construiu a partir deles “artefatos comestíveis” ainda mais saborosos. Na sua avaliação, um congresso de engenharia de alimentos não poderia deixar de discutir a sua contribuição na construção desses artefatos.
Carvalho enfatizou que o debate cancelado não contaria com a presença de “ongueiros” ou ativistas. Apenas a comunidade científica, órgãos governamentais e o setor publicitário participariam das discussões. “O veto não foi às pessoas. O veto foi ao tema”, lamentou o especialista. O professor explicou que o objetivo do encontro era discutir como a engenharia de alimentos vem construindo artefatos que rompem as defesas que o organismo humano tem para não comer além da conta. Não só as propagandas conseguem alterar o controle biológico: as características modificadas nos alimentos também têm este poder.
Dines acrescentou que a indústria de alimentos precisa sobreviver e gerar empregos e questionou como ela pode cumprir esses objetivos sem afetar a saúde pública. Carvalho explicou que os alimentos industrializados precisam ser baratos e de fácil manuseio. Só é possível um baixo custo se o produto tiver altas taxas de gordura e açúcar. Toda uma cultura em torno do alimento é construída pela indústria. “Quando você procurar um lápis cor de laranja ele vai ter a cor do ‘refrigerante cor de laranja’”, exemplificou o professor. De acordo com ele, há um conjunto de símbolos que estão sendo agregados aos alimentos.
Ao longo de décadas, fatores políticos, sociais e econômicos levaram ao aumento da obesidade infanto-juvenil no Brasil. O ex-ministro José Gomes Temporão citou alguns dos principais fatores que provocaram esse quadro. Um deles é a mudança na dinâmica familiar, que fez com que as pessoas comam fora de casa com uma maior frequência ou que comprem refeições industrializadas prontas em supermercados. Esses produtos, na visão do ex-ministro, são um “coquetel molotov em termos de sal, gordura e açúcar”.
Outros fatores são a entrada da mulher no mercado de trabalho e o aumento da violência, que fez com que as crianças deixassem de brincar nas ruas. Na avaliação de Temporão, é preciso que o consumidor detenha todas as informações acerca do produto que vai consumir para que possa exercer plenamente os seus direitos.
Será que a publicidade, ao colocar um produto de maneira inteligente, sedutora, inovadora, mostra o outro lado? O que tem ali dentro que, se consumido abusivamente, pode fazer mal para a saúde? Não. Para uma criança, então... Quero lembrar o que para mim é o exemplo mais mórbido: ‘Danoninho vale por um bifinho’. O que isso causou de problemas na saúde pública não está no gibi”, criticou o ex-ministro. Ele ainda afirmou que a sociedade vive paradoxos. De um lado, há uma gigantesca máquina voltada para o consumo e, de outro, um forte mercado de dietas mágicas, livros de autoajuda, academias de ginástica. “Ao mesmo tempo em que a propaganda diz ‘coma um pouco mais disso’, diz ‘você tem que ser magrinho’”, lembrou Temporão.
O ex-ministro criticou a postura rígida do Conar quanto à regulação do Estado na publicidade. Para ele, o argumento de que a atuação do Estado interferiria no direito de escolha do cidadão não é válido porque a publicidade constrói uma pedagogia perversa ao esconder a essência do que vende. “Inevitavelmente, o Estado tem que entrar como regulador desta questão. É uma discussão coerente discutir os limites dessa regulação, eu concordo. Mas que deve haver regulação e essa regulação deve ser discutida por toda a sociedade, eu creio que sim”, afirmou.
Futuro comprometido
Ekaterine Karageorgiardis explicou que o Instituto Alana recebe denúncias sobre propagandas inadequadas para as crianças e as encaminha aos órgãos competentes. “A gente tenta dialogar com a sociedade de uma forma ampla, o que envolve as famílias, as empresas e o poder público. Partimos do pressuposto de que a nossa legislação, a Constituição, o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Código de Defesa do Consumidor e outras tantas leis defendem a criança de forma integral e absoluta”, explicou Ekaterine.
Além da publicidade na TV, outras estratégias de venda também afetam as crianças, como as embalagens, a colocação dos produtos nos pontos de venda e a distribuição de brindes infantis colecionáveis junto com refeições. A advogada do Instituto Alana ressaltou que o entretenimento mesclado com consumo de alimentos é extremamente prejudicial e pode comprometer a saúde no futuro. “A abusividade e a ilegalidade de se direcionar uma publicidade à criança é porque se sabe que ela é ingênua e que ela vai replicar essa informação, transmitindo-a para o responsável, e vai ser uma promotora de vendas. A criança fica em casa assistindo à TV ou jogando joguinhos de computador, que são repletos de anúncios de alimentos”, disse Ekaterine.
Fonte: Observatório da Imprensa
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